Crença é aquilo que professamos acreditar; é o conteúdo doutrinário peculiar à nossa facção da cristandade, expresso com palavras muito bem escolhidas em nossas declarações de fé. Não há, por outro lado, conjunto de palavras suficiente para definir adequadamente a fé.
Nossas crenças são passíveis de exposição, mas nossa fé é questão pessoal, seu conteúdo é o mistério tremendo, a tensão superficial entre mim e o universo, entre mim e o desconhecido, entre mim e o futuro, entre mim e a morte, entre mim e o outro, entre mim e Deus.
Os religiosos de todas as estirpes vivem em geral muito mais preocupados com as filigranas da crença do que com a vivência da fé, e posso dizê-lo por experiência própria. As divisões que fazemos questão de estabelecer entre a nossa e as demais facções da cristandade, e entre a cristandade e as outras heranças religiosas, estão fundamentadas, naturalmente, em diferenças de crença.
Às vezes dizemos que diante de Deus o desafio da fé é o mesmo para todos, mas agimos claramente como se nossa identidade de cristãos e de seres humanos fosse adequadamente definida pelo teor de nossas crenças.
Sentimo-nos devidamente legitimados, devidamente representados, pela felicidade de pertencermos ao grupo ou denominação que professa (ao contrário de todos os outros grupos ou denominações) a crença mais pura, destilada e correta. Fingimos que nos dobramos diante de Deus e de seu Cristo, mas nosso cristianismo é ortodoxolatria.
A fé isola o indivíduo; a crença (qualquer que seja inclusive a cristã) ajunta pessoas. Na crença nos vemos unidos a outros na mesma corrente institucional, todos orientados em direção ao mesmo objeto de crença, compartilhando das mesmas idéias, seguindo os mesmos rituais, arrolados na mesma organização, falando o mesmo dialeto.
Não devo iludir a mim mesmo ou a quem quer que seja dando a impressão de que resta algo de importância na vida espiritual (ou na vida) que não seja a fé, e, minha gente, minha fé não é aquilo em que acredito. Minha fé não está naquilo em que acredito, nem poderia estar. Minha fé não é adequadamente expressa por aquilo em que acredito, nem poderia ser.
Em primeiro lugar, porque minhas crenças mudam, mesclam-se e transformam-se constantemente. Minhas crenças nascem, reproduzem-se e morrem num plano totalmente independente do desafio que está na fé.
Em segundo lugar porque, toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham porque satisfazem a nossa necessidade de religião. Quem pergunta aquilo em que acredito está tentando estabelecer comigo a mais rasteira das conexões; está querendo legitimar a sua crença a partir da minha, e isso não tem como ser saudável para ninguém.
Quem se abraça dessa forma à crença está buscando, evidentemente, o conforto do terreno conhecido e palmilhado. "A crença é confortadora". "A pessoa que vive no mundo da crença sente-se segura". A fé, por outro lado, é coisa terrível, a que ninguém em são juízo deveria aspirar.
A fé deixa-me sozinho com um Deus que pode não estar lá. A fé convida-me a um grau de liberdade que posso não ter desejo de experimentar. A fé quer tirar-me da zona de conforto da crença e levar-me para regiões de mim mesmo aonde não quero ir. A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A crença explica sensatamente aquilo em que acredito, a fé exige loucamente que eu prove.
Nossas crenças são âncoras de legitimação, que nos mantêm seguros no lugar, mas nos impedem de seguir adiante, o que, convenhamos, é muito conveniente. Quem iria em sã consciência escolher abandonar o abraço confirmatório da crença comum e dar um passo em direção à vertigem da fé, ao desafio de tornar-se um indivíduo separado, distinto e singular (numa palavra, santo) diante de Deus. Queremos voltar para o Egito, onde havia cebolas; não suportamos o desafio constante, sempre iminente, sempre exigente, do deserto.
Não tenho como recomendar a crença; sua única façanha é nos reunir em agremiações, cada uma crendo-se mais notável do que a outra e chamando o seu próprio ambiente corporativo de espiritualidade. Não tenho como endossar a crença; não devo dar a entender que a espiritualidade pode ser adequadamente transmitida através de argumentos e explicações. Não devo buscar o conforto da crença; o Mestre tremeu de pavor e não tinha onde reclinar a cabeça. Não devo ouvir quem pede a tabulação da minha crença; minha fé não é aquilo em que acredito.
Nunca deixa de me surpreender que para o cristianismo Deus não enviou para nos salvar um apanhado de recomendações ou uma lista suficiente de crenças, mas uma pessoa.
+Dom Eduardo Rocha Quintella
Bispo Diocese de Belo Horizonte
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